Os primeiros sintomas são comuns a várias doenças: febre, cansaço, dor de cabeça. Mas a doença de Chagas, ainda endêmica na região Norte, pode impactar esôfago, intestino e coração, e levar à morte. O Amapá é o segundo estado com maior incidência da doença no Brasil, atrás apenas do Pará. Segundo o Ministério da Saúde, em 2023, foram 31 infecções pela doença.
Multissistêmica, a doença de Chagas é caracterizada por uma fase aguda — que pode durar semanas ou meses —, apresentando sintomas leves ou até assintomática. Também existe a fase crônica, como explica o coordenador-geral de Vigilância de Zoonoses e Doenças de Transmissão Vetorial do Ministério da Saúde, Francisco Edilson Ferreira de Lima Júnior.
“Uma vez persistindo, a infecção vai desenvolver uma forma aguda, que pode ser subclínica ou manifestar sinais — como febre. Depois disso, [a infecção] entra numa forma que chamamos de ‘indeterminada’, que não consegue ser identificada — não tem sintomas clássicos. E, após algum tempo, que pode durar anos, pode desenvolver a forma crônica. E essa é uma forma que pode ser tanto cardíaca — que afeta o coração — como digestiva, podendo afetar o esôfago e o intestino. Se a pessoa tratar, tanto na fase aguda como na forma indeterminada, ela pode, sim, eliminar o Trypanossoma cruzi e não desenvolver essa forma crônica”.
Doença de Chagas: transmissão no Amapá
Uma das principais formas de transmissão no Amapá é a oral, no consumo de alimentos contaminados por barbeiro com o Trypanosoma cruzi — devido à falta de higiene e de cuidados no momento do processamento. Em 2023, pelo menos quatro mortes pela doença foram causadas depois da ingestão de açaí natural contaminado com o barbeiro, segundo a Secretaria de Saúde do Amapá. Um problema comum, como explica Rackel Barroso, gerente do Núcleo de Vigilância Ambiental estadual.
“A contaminação na nossa região acontece, na maioria das vezes, por conta de alguma falha no processamento do açaí natural — que é um alimento muito consumido aqui, na região. No momento que o fruto é processado, às vezes de forma muito artesanal, pode haver uma contaminação pelo vetor”.
Foi justamente dessa forma que a analista administrativa Valéria Lima, de 39 anos, de Macapá, contraiu Chagas. Ela, a filha pequena, o marido e outras 14 pessoas. Todos participavam de uma festa no interior do estado. Comeram açaí artesanal e, poucos dias depois, os sintomas apareceram.
A primeira a sentir os sinais foi a própria Valéria: febre alta por mais de 10 dias seguidos. O resultado do exame demorou e só no décimo oitavo dia, já internada e tomando soro, que veio o diagnóstico. Mas assim que o tratamento começou, os sintomas cederam. “No terceiro dia de medicação, já sumiu a febre, sumiram as manchas”, relata.
“Como foi descoberta logo no começo, a medicação já começa a fazer efeito. Tive nada e só precisei fazer check-up anual. Hoje, faço a cada dois anos. Tenho uma vida normal”.
A gerente da Vigilância Ambiental Rackel Barroso explica como a população pode se prevenir contra essa forma de transmissão da doença de Chagas.
“Primeiro, evitar essa maneira [de consumir o produto] que não passa por todas as etapas de processamento, inclusive o branqueamento — que é um choque térmico que o fruto passa no momento do preparo. E também pela catação, que é uma esteira de tratamento onde se põe o fruto e embaixo caem todas as sujidades, ou seja, aquilo que a gente não quer que esteja no alimento”, orienta a gerente.
A gestora ainda indica que a população procure locais de processamento do fruto que tenham licença de Vigilância Sanitária e cumpram todas as etapas de cuidado e certificação do preparo do açaí.
Além da transmissão oral, há também a vetorial, pela picada do barbeiro infectado, permitindo a entrada do parasita Trypanosoma cruzi na corrente sanguínea. Há uma terceira forma de transmissão, a vertical, quando a gestante infectada por Trypanosoma cruzi pode passar para o bebê durante a gestação ou no parto.
Para evitar que o barbeiro entre em casa e forme colônias, o Ministério da Saúde recomenda o uso de mosquiteiros ou telas metálicas em janelas e a aplicação de inseticidas residuais realizada por equipe técnica habilitada. Também preconiza o uso de repelentes, roupas de mangas longas, durante atividades noturnas em áreas de mata.
Doença de Chagas: referência e tratamento no Amapá
No Amapá, o atendimento começa sempre na Atenção Primária, ou seja, em uma das Unidades Básicas de Saúde (UBS) dos municípios. O médico pede um exame específico que deve ser realizado no Laboratório Central de Saúde Pública do Amapá (Lacen). Com o resultado em mãos, a pessoa retorna ao médico na UBS. Caso positivo, o encaminhamento é feito a três unidades de referência da doença, em Macapá (AP), para dar início ao tratamento e acompanhamento com especialista. São elas: Hospital de Clínicas Alberto Lima (Hcal), Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Zona Norte e UBS Rubin Aronovitch, onde há um médico infectologista para o atendimento às pessoas com a doença.
O tratamento para as fases aguda e indeterminada da doença dura cerca de 60 dias, feito com Benznidazol em comprimidos, produzido por um laboratório público brasileiro — fornecido exclusivamente pelo SUS. Segundo Francisco Edilson de Lima Júnior, coordenador-geral de Vigilância de Zoonoses e Doenças de Transmissão Vetorial do Ministério da Saúde, quanto antes a pessoa começa a se tratar, maiores as chances de sucesso.
“O tratamento tem maior eficácia quanto antes for feito. Na forma aguda, tem uma alta eficácia e, também, na forma indeterminada. Na forma crônica, dependendo do estágio que a doença tiver, o tratamento já não vai ter tanto efeito. Os tratamentos para a forma crônica são muito mais úteis para os sintomas”, explica o gestor.
A doença de Chagas é a infecção parasitária que mais mata no Brasil. Autoridades de saúde estimam que a doença de Chagas atinge de um a três milhões de brasileiros atualmente. Boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, publicado em abril deste ano, sobre notificações da doença de Chagas, mostra que entre janeiro de 2023 e janeiro de 2024, foram registrados 5,4 mil casos de doença de Chagas, em 710 municípios.
Doença de Chagas: eliminação da doença é um dos objetivos do programa Brasil Saudável
O Ministério da Saúde, por meio do programa Brasil Saudável — que tem como meta a eliminação de 11 doenças socialmente determinadas, entre elas a doença de Chagas—, listou 175 municípios onde o combate aos determinantes sociais relacionados a essas doenças é prioridade. De acordo com as diretrizes do programa, são localidades que possuem altas cargas de duas ou mais doenças ou infecções. A estratégia do programa busca “catalisar e potencializar as ações já existentes e/ou as capacidades de cada Ministério no atendimento às necessidades de populações e territórios mais afetados pelas doenças determinadas socialmente ou sob maior risco”.
“Escolhemos 11, pois são as prevalentes no Brasil. A doença de Chagas, esquistossomose, filariose linfática, geo-helmintíase, malária, oncocercose e tracoma — essas sete são doenças que vamos eliminar — e não ter mais no Brasil, com transmissão igual a zero”, explica o coordenador-executivo do Brasil Saudável e diretor do Departamento de HIV/Aids, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis do Ministério da Saúde, Draurio Barreira. O gestor completa: “E outras quatro, que não vamos eliminar até 2030 de ter transmissão igual a zero, mas vamos atingir as metas da OMS, que são: tuberculose, aids, hepatites virais e hanseníase”.
Macapá e Serra do Navio são as duas cidades amapaenses prioritárias no Brasil Saudável. A capital possui altas cargas de doença de Chagas, sífilis congênita, HIV/aids, hanseníase e tuberculose. Já o município de Serra do Navio tem cargas elevadas de malária e geo-helmintíases.