Quando a morte chegou, a encontrou à beira de um poço natural onde os últimos de sua espécie bebiam água, no sertão do atual Ceará. O corpo da paleolama, uma versão extinta e robusta das lhamas modernas, permaneceu ali até ser desenterrado em 2006 e, recentemente, datado em 3.492 anos. Esse mesmo local, conhecido como sítio Jirau, em Itapipoca, revelou mais fósseis da megafauna — os gigantes da Era do Gelo — com idades semelhantes, sugerindo uma história muito mais longa para esses animais do que se imaginava.
As descobertas, publicadas no periódico Journal of South American Earth Sciences, indicam que a megafauna conviveu com povos originários do Brasil por milhares de anos após o fim da Era do Gelo, desafiando teorias anteriores que associavam a extinção desses gigantes exclusivamente ao clima frio e à chegada dos primeiros humanos.
— A surpreendente idade de cerca de 3.500 anos para os fósseis de Xenorhinotherium bahiense e de paleolama revoluciona o que conhecemos sobre as extinções do fim da Era do Gelo. Isso subverte dogmas da geologia e abre uma janela no tempo, revelando que o Brasil foi um refúgio final para esses animais gigantes — afirma Ismar de Souza Carvalho, professor de paleontologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e um dos autores do estudo.
O poço natural, semelhante a um tanque, foi descrito como uma “cápsula do tempo”, onde os corpos dos animais se acumularam ao longo de séculos e milênios. Além das paleolamas, foram datados fósseis de mastodontes, preguiças-gigantes e tigres-de-dentes-de-sabre, com idades entre 3.500 e 7.900 anos.
Registros únicos de Itapipoca
Itapipoca, cidade conhecida por sua diversidade climática que abrange praias, serras e sertão, revelou um registro paleontológico único, mostrando que o local era um ponto vital para a fauna da época.
— À primeira vista, o tanque parece um depósito de ossos amontoados, mas, na verdade, é um registro acumulado ao longo de milênios. Ele nos conta a história de um tempo em que a biodiversidade era muito maior — explica Carvalho.
Veja também
As análises dos fósseis foram realizadas no Laboratório de Radiocarbono da Universidade Federal Fluminense (UFF), único na América do Sul com capacidade para esse tipo de datação. O estudo também contou com a participação de pesquisadores da UFRJ, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e do Museu de Pré-História de Itapipoca.
Convivência com povos originários
O estudo também reforça a ideia de que a megafauna não apenas coexistiu com os povos originários, mas também fazia parte de seu cotidiano. Pinturas rupestres em diversas regiões do Brasil, como no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, retratam animais que se assemelham a paleolamas, mastodontes e preguiças-gigantes.
— É fascinante pensar que os povos originários caçaram e conviveram com esses gigantes. No entanto, o que provavelmente selou o destino desses animais foi a perda gradual de habitat devido às mudanças climáticas e ambientais — destaca Fábio Cortes, coautor do estudo.
O Brasil dos últimos gigantes
Durante os últimos milênios da megafauna, o Brasil já apresentava um clima quente e úmido. O Cerrado, que outrora ocupava áreas maiores durante a Era do Gelo, começou a dar lugar a florestas mais densas, restringindo os habitats disponíveis para esses animais.
Os pesquisadores apontam que as extinções não ocorreram de maneira repentina, mas como parte de um processo gradual. Fósseis semelhantes datados no Alasca e na Sibéria mostram que, no Hemisfério Norte, mamutes e outros gigantes também sobreviveram até 3.500 anos atrás.
— A ciência está apenas começando a desvendar o passado do Brasil. Essas descobertas não apenas desafiam teorias antigas, mas também mostram que há muito mais para ser descoberto sobre o nosso território — conclui Carvalho.
Com esse estudo, Itapipoca não apenas reforça sua importância cultural e climática, mas também ganha um papel de destaque na história da megafauna brasileira. Os fósseis encontrados no sítio Jirau mostram que o sertão cearense guarda segredos do passado que podem reescrever a história da fauna e do clima das Américas.