Pelo menos três municípios cearenses — Itapipoca, Sobral e Juazeiro do Norte — já indicaram baixa nos estoques da poliquimioterapia (PQT), composto utilizado para tratamento da hanseníase. Conforme oMovimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), que acompanha a situação da doença no país, o medicamento está em falta desde abril do ano passado em 18 estados, sendo distribuído pelo Ministério da Saúde (MS).
O Nordeste é a região mais afetada pelo desabastecimento e, dos nove estados que compõem a área, seis já comunicaram a baixa no estoque: Ceará, Maranhão, Paraíba, Bahia, Pernambuco e Alagoas. Em pronunciamento, o órgão confirmou que “estados têm relatado faltas pontuais do tratamento multibacilar adulto (MBA)”, mas que em janeiro iniciou a distribuição de 50 mil cartelas de PQT para os estados.
Segundo explicam, o atraso na entrega da doação do medicamento pela Organização Pan-americana de Saúde (OPAS/OMS) acarretou a consequente demora no abastecimento nacional. Acrescentam também que o envio estava previsto para outubro do ano passado, mas testes detectaram desvios na qualidade dos medicamentos. “Dessa forma, foi necessária a produção de novos lotes do medicamento para envio ao Brasil”, complementa o posicionamento.
“A pasta deve se reunir novamente com as empresas para discussão das propostas que são encaminhadas ao Ministério da Saúde pelos laboratórios públicos e privados. Paralelo a isso, a pasta já está em diálogo com Biomanguinhos/Fiocruz que também deve apresentar um projeto de produção de medicamentos para hanseníase”, diz o MS.
De acordo com a Secretaria de Saúde Estadual (Sesa), o Estado recebeu dois lotes neste mês, tendo sido um no dia 2 e outro na última sexta-feira (5), sendo “adquirido de forma centralizada no Ministério da Saúde (MS)”.
Ainda segundo a Sesa, o MS está com dificuldade no abastecimento desse medicamento “por causa da fabricação no laboratório”. Em nota técnica sobre o desabastecimento de PQT publicada em janeiro deste ano, a Sesa informa que o estoque cearense do tratamento deve durar até abril de 2021. A nota também orienta sobre a distribuição da medicação no Estado.
Sem medicação para a família
No caso do universitário itapipoquense, Marcos Pires, 22,três pessoas dependem do tratamento com poliquimioterapia em seu lar. Após seu pai ser diagnosticado com hanseníase multibacilar, manifestação mais contagiosa da doença, em novembro do ano passado, a família começou a realizar a busca por outros casos próximos. Nesse processo, suas irmãs de 14 e de 18 anos foram diagnosticadas com o tipo paucibacilar, mais branda e menos transmissível. Ambas foram encaminhadas para tratamento.
“Minha irmã foi diagnosticada em novembro e começou a tomar a medicação em dezembro e acabou a medicação. Fui semana passada no posto e me falaram que ela receberia a medicação que estaria para chegar nesta semana. Meu pai não tem previsão porque não tem medicação multibacilar. E a minha outra irmã, a mais velha, que foi diagnosticada, ela também está sem tomar medicação para ela”, explica.
Além dos desconfortos na pele trazidos pela hanseníase, a maior preocupação da família é com o espalhamento da doença. “Aminha preocupação é essa medicação não chegar, meu pai e minhas irmãs estarem transmitindo para outras pessoas. Eu vejo isso como um descaso na saúde pública. Um medicamento essencial para barrar a disseminação dessa doença tão silenciosa e tão grave”, avalia o universitário.
Acompanhamento da doença
Odermatologista Heitor de Sá Gonçalves reforça a necessidade do acompanhamento medicamentoso para o controle da doença no indivíduo e evitar a transmissão para pessoas saudáveis. “É um esquema com 99% de eficácia para destruir todos os bacilos da hanseníase. Quando começa a tratar, mesmo os pacientes que estavam transmitindo, não transmitem mais”, explica o médico, diretor geral do Centro de Dermatologia Dona Libania, referência no tratamento para hanseníase no Estado.
Ainterrupção da medicação também traz prejuízos epidemiológicos, avalia Gonçalves. “Se você para esse medicamento em um paciente que está em tratamento, você vai ter um risco muito aumentado de bacilos resistentes que vão mais ser destruídos por esse tratamento nesse paciente e quando esse paciente infectar outras pessoas”. Complicações por conta do abandono medicamentoso também são decorrentes.
“O paciente que não começou nenhum tratamento e o que abandonou, pode apresentar o que a gente chama de ‘reação hansênica’, é uma reação do organismo para matar o bacilo. Só que vai lesar os nervos, gerando áreas de dormência que vão ficar insensíveis, que vão ser focos de queimaduras, que vão permitir a penetração de outras bactérias e que vão levar até a perda da substância óssea”, ressalta o especialista.
Queda da dosagem na quarentena
Ao contrário de 2019, que registrou 1.925 casos da doença, 2020 acumulou 1.213 resultados positivos para a infecção no Estado. É o menor número de diagnósticos de hanseníase das últimas duas décadas no Ceará. Anteriormente, o menor número de positivos aconteceu em 2017, quando 1.858 cearenses acusaram a presença do bacilo de Hansen. As informações são do DataSUS, painel estatístico do Sistema Único de Saúde (SUS).
Ainda na contagem da plataforma, somente 123 cearenses diagnosticados com a hanseníase paucibacilar, versão mais branda da doença, receberam as seis doses recomendadas de PQT em 2020. Já para o esquema multibacilar da hanseníase o número é ainda menor: somente 25 pessoas receberam as doze doses mínimas no ano passado. Para comparação, em 2019, 392 pessoas receberam tratamento paucibacilar e 555 para tratamento multibacilar no Ceará.
O DataSUS chama atenção para que, como os dados mais recentes ainda não foram consolidados, podem acontecer discrepâncias entre as informações apresentadas e boletins epidemiológicos.
Fonte: Dário do Nordeste