Um levantamento inédito realizado pelo Ministério Público Federal ao qual o G1 teve acesso aponta que mais de 650 mil famílias se reconhecem como povo ou comunidade tradicional no Brasil. Neste cenário, 14.655 estão no Ceará. Os grupos têm como característica principal o fato de trazerem dos territórios onde vivem e dos recursos naturais que utilizam a condição que marcam sua existência e identidade cultural.
Numa série especial, conhecemos a realidade de quatro dos sete povos analisados pelo MPF: extrativistas, pescadores artesanais, ribeirinhos e povos de terreiro. Para entender os avanços e desafios que perpassam a história dessas comunidades, o G1 conversou com pesquisadores e referências na área, que expuseram as lutas travadas ainda hoje por quem se reconhece como povo tradicional.
Levantamento
O balanço está sendo feito a partir do cruzamento de dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), da Fundação Nacional do Índio (Funai), do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Cadastro Único. Para o procurador da República e gerente do projeto Plataforma de Territórios Tradicionais, Wilson Rocha, o projeto terá resultados amplos.
“O levantamento poderá servir às próprias comunidades, em seus contextos específicos de luta por direitos. Um banco de dados público, contendo informação georreferenciada dos territórios onde as comunidades vivem, poderá aprimorar o diálogo das lideranças tradicionais com os demais agentes públicos e privados com os quais elas se relacionam”, explica o representante. Apesar de importante para o reconhecimento desses territórios, a realidade pode reunir ainda mais povos.
“A primeira limitação ou dificuldade deve-se à diversidade de grupos compreendidos na categoria povos e comunidades tradicionais, dispersos em todo o território nacional. Assim, deverá haver por parte das instituições e das lideranças comunitárias um esforço muito grande de difusão da ferramenta, esclarecendo as próprias comunidades e instituições que as apoiam da possibilidade de alimentar a Plataforma com o registro georreferenciado de seus territórios”, finaliza o procurador.
Economia
Para o professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutor em Geografia pela Universidade de Barcelona, Jeovah Meireles, o levantamento se mostra importante por poder “avançar para definir diagnósticos socioambientais de cada um desses territórios, onde estão, quais os biomas que fazem parte, qual a relação com a terra”, relacionando “principalmente as comunidades do campo e zona costeira, onde se tem uma relação importantíssima com a produção de alimentos”.
Esses povos contribuem com a agricultura familiar, pesca e a agroecologia. “Alguns territórios podem ser demarcados como reservas, outros podem ser titulados coletivamente. Entretanto, várias dessas populações tradicionais estão passando por disputas de seus territórios contra o grande capital transnacional, muitas vezes relacionados localmente por propostas de construção de resorts, hotéis, pela mineração de ferro ou uso exagerado de agrotóxicos”, finaliza o especialista.
Unidades de conservação
Para a professora da UFC, Maria do Céu, que estuda Movimentos Sociais com ênfase em geografia, comunidades e povos tradicionais, “as unidades de conservação, instituídas a partir do que define o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC – LEI 9.985/2000), são parte da estratégia de conservação ambiental e se diferenciam quanto aos objetivos e à forma de proteção e usos permitidos”. Ela ressalta a necessidade de considerar a realidade diversa das diferentes comunidades.
A especialista é uma das referências no que se refere às Reservas Extrativistas (Resex) no Ceará, que possui duas unidades protegidas pela União: Prainha do Canto Verde (Beberibe) e Batoque (Aquiraz). Para ela, é preciso mais. “Nos primeiros anos do século XXI, oito comunidades da Zona Costeira do Ceará solicitaram que seus territórios fossem transformados em Reservas Extrativistas”, lembra. Destas, só duas foram atendidas.
No entanto, segundo a pesquisadora, seis solicitações seguem sem conclusão. São elas: processos constituídos a partir das demandas de moradores da Comunidade Pesqueira Marítima de Tatajuba (Camocim), do Assentamento Maceió (Itapipoca), do Assentamento Sabiaguaba (Amontada), da Comunidade Pesqueira Marítima de Xavier (Camocim), da Comunidade de São Mateus (Camocim), e da Comunidade do Cabreiro (Aracati).
Desafios
“Os desafios são muitos tendo em vista às pressões externas associadas à valorização dos litorais, à especulação imobiliária, à atuação de empresários vinculados aos negócios turísticos e criminalização das lutas sociais”, lamenta a pesquisadora. Na Resex do Batoque, por exemplo, 30% das residências são caracterizadas como segundas-residências, que ocupam parte significativa do território destinado apenas à famílias beneficiárias nos termos da legislação vigente.
Avanços
Para o procurador Ricardo Magalhães de Mendonça, “tradicionalmente há um esforço por parte do Estado para garantir esses direitos” mas que, por outro lado, esbarram nas questões orçamentais. “Para fazer uma demarcação para tornar um território indígena, por exemplo, é preciso demandar recursos para as indenizações. Isso deixa os processos parados pela falta de orçamento”, explica, ressaltando que a situação se agravou nos últimos anos: “há um esgotamento”.
“Nós estamos sentando, chamando o Estado para que ele compense as ações em empreendimentos que foram feitos sem planejamento”, finaliza o procurador.