Uma nota técnica assinada por 86 entidades da sociedade civil e órgãos públicos está provocando um debate intenso sobre a política do governo federal que oferece incentivos para a construção, reforma e privatização da gestão de presídios no país, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A iniciativa, que conta com apoio de organizações como o Núcleo Especializado de Situação Carcerária (Nesc) da Defensoria Pública de São Paulo, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), a Associação Juízas e Juízes pela Democracia (AJD), a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep) e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), denuncia uma série de preocupações em relação a esses projetos.
O documento argumenta que os projetos que permitem que empresas privadas assumam a gestão prisional acabam transformando o setor em um “mercado lucrativo”. Segundo a nota, os contratos com a iniciativa privada parecem favorecer o encarceramento em massa, com cláusulas contratuais que exigem taxas mínimas de lotação das unidades prisionais e remuneração das empresas por cada pessoa encarcerada, o que pode resultar na submissão dos detentos a trabalhos forçados e no aumento das margens de lucro com a precarização do sistema prisional.
Um dos principais pontos destacados pelas entidades é a situação alarmante da população carcerária no Brasil. Desde 2017, o país ocupa a terceira posição no ranking mundial de população carcerária, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. No entanto, em contraste com esses países, o Brasil tem visto um aumento constante em suas taxas de aprisionamento nos últimos anos.
A nota ressalta ainda que a população carcerária brasileira é composta por 46,4% de pessoas entre 18 e 29 anos e 67,5% de pessoas negras, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021. Isso representa uma sobrerrepresentação em relação à população total do país, que é composta por 56% de pessoas negras. Para as entidades, é inadmissível que violações de direitos humanos se agravem em meio a incentivos fiscais e investimentos milionários do governo federal.
Entre os projetos em andamento, destaca-se o procedimento licitatório para a privatização do presídio de Erechim, no Rio Grande do Sul, cujo leilão está previsto para o próximo dia 6 de outubro. Neste caso, o BNDES prevê financiamento de R$ 150 milhões para subvencionar a construção da unidade prisional pela iniciativa privada. A Parceria Público-Privada (PPP) estabelece que a empresa vencedora será remunerada pela gestão de uma concessão pública com 30 anos de duração, incluindo os serviços de manutenção das instalações, limpeza e apoio logístico na movimentação das pessoas presas.
Outro projeto do BNDES em andamento é uma parceria para a construção e operação de um complexo prisional em Blumenau, em Santa Catarina, para abrigar cerca de 2,9 mil detentos, que prevê investimentos de R$ 250 milhões.
Procurado pela reportagem, o BNDES informou que os dois contratos de estruturação de projetos de PPPs no setor prisional foram iniciados na gestão anterior e mantidos pelos atuais governadores estaduais.
Segundo o BNDES, as ações foram qualificadas no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) do governo federal, acompanhadas regularmente pela Casa Civil, e são de concessão administrativa, modelo em que o poder de polícia e a gestão permanecem sob a responsabilidade exclusiva do poder público.
“Nesse tipo de projeto, são delegadas ao parceiro privado apenas as atividades de construção e manutenção de infraestruturas e serviços não finalísticos. A remuneração do concessionário é baseada na disponibilidade dos serviços, não havendo qualquer incentivo para aumentar a ocupação das vagas. Não se trata, portanto, de privatizar o sistema prisional, mas contar com um ente privado para construir a infraestrutura e prestar serviços gerais (limpeza, alimentação, lavanderia), de educação profissionalizante, disponibilização de vagas de trabalho, suporte social e acompanhamento dos familiares”, diz o banco público.